O adjetivo “lynchiano” é o maior elogio que alguém com pretensões de construir um sonho cinematográfico poderia receber. Lynch é o supremo arquiteto dos sonhos no cinema, the dreamer who dreams and then lives inside the dream. Portanto, qualquer filme onírico remete a ele. Mas, neste caso, talvez tenha sido The Trial, de Welles, que tornou possível Eraserhead ou seu ápice em Mulholland Drive. Independentemente de o ovo ter vindo antes da galinha — isto é, se Lynch foi ou não influenciado por esse filme —, é impossível negar as semelhanças de ideias sobre o que é um sonho e como construí-lo.
O filme de Welles é quasi-expressionista, deformando as formas (sem de fato as deformar) e construindo (e desconstruindo) uma cena que é um personagem por si só. A absurdidade de um sonho, a frouxidão dos nexos causais, aquela sensação estranha de vigilância constante — tudo isso é expresso visualmente por Welles, que utiliza a linguagem cinematográfica de forma fluida e inventiva.
Logo no início do filme, uma narração nos apresenta à certa parábola intitulada “Diante da Lei”. Como toda parábola, ela carrega um tom fantasioso, ambientado em tempos imemoriais — um tom confirmado pelo próprio narrador, que é ninguém menos que Welles:
“It has been said that the logic of this story is the logic of a dream, of a nightmare.”
O primeiro plano após a fábula é do protagonista acordando de uma noite de sono. Seu pesadelo tem início no momento em que abre os olhos, já levantando o motivo onírico. Assim como na novela de Kafka, a premissa é absurda: uma falsa acusação de um crime inominável e a subjugação por parte de uma burocracia conspiratória.
Um dos principais meios pelos quais ele expressa o efeito de opressão é a verticalidade — por exemplo, por meio de constantes contra-plongées, que transformam os tetos em planos de fundo, causando uma sensação claustrofóbica e opressiva. E é exatamente nessa posição que se encontra o Sr. K: esmagado pelo peso de uma rede conspiratória; por mais que tente escapar, seus esforços são tão úteis quanto os da truta em Die Forelle. Essa ideia de direção focada no eixo Y cria uma sensação de angústia profunda, e Welles a recria não apenas por meio de espaços apertados, mas também com o uso de planos abertos que acentuam a pequenez dos personagens diante daquelas estruturas gigantescas e inexoráveis.
Outro efeito que a direção busca é a sensação de diluição do Eu — objetivo tanto da burocracia infernal quanto da “maquinização” do homem, características conhecidas por todos os homens modernos. Welles constrói esse sentimento, por exemplo, em uma cena impressionante, utilizando a profundidade de campo para mostrar trabalhadores indistintos representando o “mundo do Sr. K” (o trabalho), em contraste com sua família (seu tio), que tenta ajudá-lo a escapar de seu terrível destino.
Creio que uma interpretação coerente do filme pode transitar tanto por uma explicação psicológica — um conflito entre forças do consciente e do subconsciente tentando integrar uma “sombra”, como em Silent Hill — quanto por uma representação da diluição do indivíduo no reino da quantidade. Talvez a expressão psicológica no sonho não passe de uma tentativa do verdadeiro Sr. K de resistir ao caos, tentando escapar da dissolução exterior.
Uma das características mais marcantes do cinema lynchiano é o uso de personagens-arquétipos — figuras que encarnam ideias puras. Essa abordagem, que tanto se assemelha à estrutura dos sonhos, é um dos principais motivos da atmosfera onírica presente em seus filmes. Lynch herdou esse recurso de O Mágico de Oz, que talvez também tenha servido de inspiração para Welles na hora de adaptar Kafka — ainda que jamais saberemos com certeza. Caso tenha mesmo recorrido a essa fonte, Welles certamente a explorou por um viés muito mais sombrio do sonho. E aqui, no universo de The Trial, não faltam tais figuras-arquétipo.
Os detetives são figuras da burocracia e da vigilância constante — sempre representados de forma impassível e, geralmente, em posições espaciais superiores, como encarnações do Big Brother. São também agentes da dissolução: um estado policial permanente cuja função é manter o indivíduo aterrorizado.
O advogado encarna a ideia do sistema corrupto — aquele que simula ser o salvador, mas nada faz de fato. Já todas as mulheres pelas quais o Sr. K é seduzido representam a luxúria usada como instrumento de dominação pelos demiurgos modernos, e a própria alienação na matéria, uma sedução que prende os acusados em redes invisíveis. Os membros da lei, especialmente os juízes, são a personificação do labirinto no qual o Sr. K está enredado — a burocracia que se multiplica em procedimentos sobre procedimentos, repetindo-se ao infinito até tornar-se uma espiral para o abismo. Como diz o pintor, em certo momento: “[a segunda absolvição ostensiva] é automaticamente seguida de uma terceira prisão, e a terceira absolvição, e a quarta prisão…”.
As crianças, vistas através das cercas enquanto seus olhos são mostrados em closes, acompanham a última e desesperada tentativa do Sr. K de escapar de seu destino. Elas simbolizam o próprio destino — ou a burocracia — zombando da sua tentativa fracassada de escapar desse labirinto infernal. Etc. Etc.
E, no fim, há, de certo modo, algo que pode ser interpretado como um meta-comentário — algo também bastante lynchiano —, uma desconstrução da própria estrutura do filme. Isso ocorre na cena em que Welles, no papel do advogado, narra novamente aquela fábula imemorial. Assim como em Inland Empire, no qual toda a história da atriz principal se revela como uma variação de uma antiga fábula polonesa, também The Trial pode ser lido como mera variação de “Diante da Lei”: o Sr. K é o homem que, impedido de entrar no reino da Lei por um guarda, aguarda durante toda a vida. Cria-se, no caso do filme de Welles, uma estrutura que desafia a verdade interna daquele universo. Com a revelação final de que a porta não fora feita para ninguém — nem mesmo para o guarda — elimina-se qualquer traço de pessoalidade e insinua-se um sentido quase cósmico, que estabelece a burocracia como o demiurgo final: uma entidade capaz de moldar a verdade e a própria realidade.
Esse movimento dissolve os limites entre filme-realidade, como se a obra saísse de si mesma para olhar de fora, revelando sua própria construção. O objetivo é a diluição das formas, do indivíduo — o abraço ao caos e ao absurdo. Como admite o próprio Sr. K, ele perdeu seu caso. Foi dissolvido em uma tela em branco, tal como está, de fato, no projetor que o ilumina na cena final.
“That’s the conspiracy. To persuade us all that the whole world is crazy. Formless, meaningless, absurd. That’s the dirty game.”
— Arthur, perfectodio
Belo texto.
Belo filme.